segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Escritor ameaçado decifra o narcotráfico: Autor de 'Gomorra', sobre a máfia, Roberto Saviano diz que prisão é 'habitat natural' dos traficantes brasileiros

Depois de 10 milhões de livros vendidos, italiano que vive escondido lança 'Zero Zero Zero', com foco no comércio das drogas

SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULO
Desde que publicou "Gomorra", livro sobre a máfia italiana que vendeu mais de 10 milhões de exemplares, o escritor italiano Roberto Saviano, 35, vive recluso, em endereço desconhecido e com forte esquema de segurança, esquivando-se de ameaças de morte vindas de líderes criminosos italianos.
Agora, Saviano aponta para as redes internacionais do narcotráfico, nas quais a América Latina tem papel determinante.
Em "Zero Zero Zero", que sai pela Companhia das Letras, está a gênese dos cartéis colombianos, a formação das rotas mexicanas e um detalhamento de como o Brasil se enquadra nesse esquema.
Em entrevista à Folha, por e-mail, Saviano defende a liberação das drogas como solução para o fim da violência.
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Folha - Por que investigar a cocaína?

Roberto Saviano - Há anos me surpreendo com a quantidade de dinheiro que o narcotráfico movimenta. Em alguns países, trata-se de uma cifra muito maior do que a que maneja o Estado. A cocaína é uma droga muito difundida porque está relacionada à performance. Te dá a ilusão de ser uma ajuda no cotidiano. Que te faz trabalhar melhor, atuar melhor, amar melhor, mas, na verdade, ela está te destruindo.

Como foram suas investigações no México? Você usou uma rede de colaboradores?
Minha fonte principal são dados da polícia, de juízes, advogados e investigadores que conheci em viagens. E também ex-membros de cartéis criminosos que decidiram contar sua história.
Eles fazem isso por senso de vingança ou por vontade de contar a própria versão dos fatos.
Como foi sua pesquisa no Brasil? Qual a particularidade do narcotráfico aqui, comparado com o México?
Brasil e México têm distintos papéis no tráfico de drogas. O México é um ponto importante na cadeia do narcotráfico, porque as maiores organizações que controlam o abastecimento de cocaína para os Estados Unidos e a Europa são mexicanas.
O Brasil é basicamente um ponto de trânsito. Cerca de 25% das 200/300 toneladas de cocaína que são consumidas na Europa anualmente passam pelo Brasil.
Devido à sua posição geográfica, o Brasil é precioso. Tem fronteira com Colômbia, Peru e Bolívia (os três maiores produtores de cocaína no mundo), e ainda tem uma longa costa no Atlântico, muito difícil de patrulhar.
Muita da cocaína que passa pelo Brasil permanece aí. O Brasil possui 2,8 milhões de usuários por ano, é o segundo maior consumidor de cocaína no mundo (o primeiro é os EUA).
Mas, durante minha investigação aí, o que mais me impressionou foi que as sentenças dadas aos narcos são muito severas, mas prisões parecem ser seus habitats naturais.
Atrás das grades, os líderes narcos brasileiros tomam decisões, fazem alianças, matam narcos rivais, organizam rebeliões dentro e fora das penitenciárias.

Numa entrevista, você disse que gostaria de ver as drogas legalizadas. Por quê?
Uma coisa é certa, a política repressiva e proibicionista não somente não serve a ninguém, como contribuiu para fortalecer os grupos armados. Legalizar significa iniciar lentamente a redução do poder de ação dos que produzem e distribuem ilegalmente a droga.
Infelizmente, somos incapazes de perseguir essa rota, especialmente na Europa, onde nem sequer começamos um debate sobre o assunto.

Em sua narrativa, você nunca menciona suas fontes e tenta fazer com que seja uma narrativa de não ficção disfarçada de ficção. Por quê?
Chamo o que faço de romance de não ficção e o escolhi porque acredito que a história do mundo criminoso deveria sair do ambiente restrito de experts e tornar-se compreensível para todos aqueles que se importam uns com os outros.
Para fazer isso, você não pode citar documentos legais. Quaisquer referências em "Zero Zero Zero" seriam maiores do que o livro. E notas de rodapé o fariam ilegível.